Eunomia

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Ao assumir como arconte na antiga Grécia, Sólon – a quem já me referi anteriormente – não somente optou por revogar praticamente todas as leis impostas por Draco (exceto a lei de homicídio se não me engano), mas tentou criar estruturas permanentes baseadas em princípios universais e em leis de Estado: aboliu a escravatura, os votos hereditários e censitários (baseado em renda) e até padronizou pesos e medidas; tinha a idéia de que a governança por meio das leis traria uma ‘boa ordem’, ou seja, eunomia.

Sólon considera seu trabalho acabado, abdica e deixa o país; em apenas quatro anos um de seus parentes, Pisístratos, toma o poder e inicia uma nova tirania hereditária – Sólon chama o povo ateniense de estúpido e covarde por deixar isso acontecer, mas não creio que sejam somente esses os motivos.

A históra de erros e acertos gregos continua com Clístenes entendo que era uma estrutura de poder centralizada – e não o regime em si – que permite o surgimento de tiranos; aumentou então a participação de cidadãos nas escolhas e nos serviços públicos somente para ver a instabilidade voltar a crescer pelo abuso do poder do povo, a chamada oclocracia. Não havia no modelo de Clístenes um contraponto ao poder das hordas e facções.

Hoje em dia, no Brasil, o termo ‘democracia’ é visto como um valor e não como algo efetivamente existe na realidade; como algo que se analisa do ponto de vista histórico e que se identifica (ou não) em nações ao redor do mundo. Qualquer crítica à ‘democracia’ é vista como ataque à um valor e sem um referente na realidade, mas o ponto é que a democracia enquanto vontade do povo não deve ser, necessariamente, o objetivo final de uma nação. A democracia deve co-existir em um sistema onde outros poderes independentes (e legítimos) limitem-se uns aos outros – é isso que demonstradamente traz a eunomia.

A constituição dos Estados Unidos (1787) e a primeira constituição do Brasil Império (1824) trazem essa idéia à vida com a perfeição que somente pessoas como os pais-fundadores do Estados Unidos e os Andrada e Silva – inspirados por pensadores como Montesquieu e John Locke – poderiam conseguir (Na Austrália a estrutura constitucional é um pouco diferente).

Com o tempo alguns dos conceitos descritos em tais documentos foram sendo minados, ocorre uma confusão entre os conceitos de Governo e Estado, o poder volta se a concentrar e centralizar, etc., causando novamente um desequilíbrio entre as forças responsáveis pela eunomia. Quando esse desequilíbrio está mais aparente, a impressão é de uma ‘desconfiança na democracia’, como visto aqui na Austrália (gráfico abaixo).

Discuto alguns desses fatores de desequilíbrio nos três países nos posts seguintes.

Eleições 2018 – Segundo Turno

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Interessante observar o comportamento dos brasileiros nas diversas cidades.

Abaixo uma amostra de cidades onde Fernando Haddad venceu (à esquerda) e onde Jair Bolsonaro venceu (à direita).

Acima e em maior destaque o resultado geral no exterior.

Eleições 2018 – Resultados do Primeiro Turno

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O índice de absentação desse ano foi menor que o de 2014. O número total de votantes também foi bastante superior.

Aguardemos o segundo turno.

Sobre O Plebiscito – Casamento Entre Pessoas do Mesmo Sexo

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De acordo com uma pesquisa do Pew Research Institute, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos está  – dentro do período de vida dos entrevistados – entre os dez eventos mais importantes ocorridos para os chamados Millennials (quarto lugar) e também para os membros da Geração X (oitavo lugar). É bastante provável, na minha opinião, que o mesmo ocorra na Austrália quando os resultados do plebiscito (previstos para novembro) e subsequente legislação (início do ano que vem) se efetivarem. Mas é importante analisar os eventos que nos trouxeram aqui – e de que maneira – e o que esperar na sequência.

O casamento na Austrália é regulamentado e definido pelo Marriage Act de 1961, um documento até certo ponto recente e que recebeu diversas alterações ao longo do tempo. É importante mencionar aqui que tal definição de casamento não é parte da constituição per se; a constituição define que o parlamento tem o poder de legislar sobre o casamento – e que qualquer lei e regulamentação deve ser válida em todo o país.

Em sua versão original, o Marriage Act não determinava que o casamento era válido somente entre pessoas de sexo oposto; o que valia então era a determinação da common law inglesa (relação monogâmica e heterossexual). Somente no ano de 2004 é que a definição de casamento foi propriamente descrita no Marriage Act para garantir que somente casais heterossexuais fossem aceitos – inclusive invalidando casamentos entre pessoas do mesmo sexo ocorridas no exterior, onde a lei assim permitisse. Do ponto de vista político é crítico mencionar que tanto os partidos da situação quanto da oposição, na época, votaram pesadamente em favor de tal alteração e, alguns membros do congresso, permanecem na vida pública e no parlamento hoje.

Para a eleição federal de 2016 a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo (same sex marriage em inglês, ou a sigla SSM) foi um dos temas centrais, mas os partidos de situação e oposição tinham visões diferentes de como a mudança deveria ocorrer: o partido da situação (Liberal) veio com a proposta de um plebiscito nacional para a mudança do Marriage Act; o partido de oposição (Labor) acreditava que caberia apenas ao parlamento decidir e alterar o Act – ambos os líderes dos partidos mostraram-se favoráveis à mudança.

O partido de situação venceu a eleição, mas a legislação sobre o plebiscito foi barrada pela oposição. Acredito que ser importante mencionar que o líder da oposição, no ano de 2009, fazia campanha em favor de um plebiscito! Por quase um ano as discussões não avançaram e a solução então encontrada foi algo, no mínimo, bizarro: uma votação não-obrigatória por correio à partir do dia 12 de setembro. Os resultados devem sair em meados de novembro como mencionei anteriormente.

Como eu vejo a questão, as discussões e o que espero:

  • Acredito ser de fundamental importância que essa alteração ocorra de maneira plebiscitária. Apesar de não ser uma alteração constitucional propriamente dita, ela tem o “peso” de uma. Essa decisão pertence à sociedade e não deve, de maneira alguma, pertencer aos mesmos políticos e partidos que, somente 13 anos atrás, legislaram de maneira contrária ao que hoje defendem;
  • Ao se fazer tal alteração de maneira plebiscitária, creio criar-se um precedente para que novas alterações no Marriage Act não sejam feitas (ou revertidas) pelo parlamento; mudanças estruturais como esta não podem ser feitas simplesmente por legislação – elas não pertencem ao partido no poder;
  • Infelizmente permitiu-se muito pouco debate sobre a questão (por motivos que não vou descrever aqui nesse post) e muito pouco espaço foi dado para pessoas levantarem suas preocupações sobre como a legislação – pós plebiscito – efetivamente seria. Muitas das preocupações são justas e merecem ser respondidas;
  • No plebiscito republicano de 1999, onde o “sim” pela República perdeu, o principal motivo apontado foi a falta de claridade e definição de como seria a República em si; votar “sim” pela República não significa nada sem que se determinasse coisas básicas como: o regime seria parlamentarista ou mudaria? Quem seria o chefe de Estado e como seria apontado? Qual a diferença de custo eleitoral nesse novo regime? Sem questões básicas de legislação discutidas, o “sim” (pela República ou pela aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo) não é nada além de uma carta branca ao parlamento;
  • Acredito que o simbolismo de uma votação nacional aprovando o SSM seja importante; ninguém trabalha com a possibilidade do “não” vencer o plebiscito, mesmo que seja essa versão bizarra não-obrigatória – as pesquisas apontam uma vitória do “sim” por algo entre 63 e 67% consistentemente (e já há alguns anos). Seria mais interessante aproveitar esse momento, onde a vitória é dada como certa, para endereçar as preocupações dos outros 37% da população;
  • Eu tive um pequeno debate por e-mail ano passado com o MarriageEquality.Org, onde pude colocar minhas questões do que seria (e deveria) ser incorporado na(s) nova(s) legislação(ões) – nenhuma delas ligadas à aprovação ou rejeição do casamento em si. Questões referentes à vara de família, guarda de crianças, adoções internacionais (hoje não se consegue fazer adoções internacionais de países que permitam a adoção por casais do mesmo sexo), objeções legais de como as leis seriam redigidas, liberdade religiosa, etc. Agradeço o tempo despendido e cordialidade demonstrada por eles comigo;
  • Pessoalmente acredito ser importante que essa alteração ocorra por um governo Liberal/Conservador; não somente o estigma agregado aos termos (liberal e conservador) se perderia (ao menos diminuiria), como acredito que minhas preocupações (acima mencionadas) sejam melhor endereçadas pelo partido da situação;
  • Apesar de, como disse, pouco ter se discutido sobre a legislação em si, sabendo o que pensam muitos dos atuais membros do parlamento sobre a questão, tenho a esperança de que minhas preocupações sejam propriamente endereçadas. Não acredito, de maneira alguma, que o mesmo aconteceria se o partido da oposição fosse o responsável principal pela legislação. Votarei, portanto, pelo “sim”.

Sobre o Terrorismo Mudar Nosso Modo de Vida

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Em sua resposta ao ataque terrorista em Manchester (Maio de 2017), o Primeiro-Ministro da Austrália faz a seguinte declaração:

“We will not be cowed by terrorists. We will not be intimidated by them. We will not change our way of life” (Não seremos acuados pelos terroristas. Nós não seremos por eles intimidados. Nós não mudaremos o nosso modo de vida).

Diversos líderes ao redor do mundo têm o mesmo discurso. Parece a coisa certa a se dizer, mas no fundo é uma mentira. É claro que a maneira como conduzimos nossa vida muda; violência de qualquer tipo impacta o nosso modo de vida.

Desde 2014 a Austrália investiu cerca de AU$ 1.500.000.000 (um bilhão e meio de dólares australianos – cerca de quatro bilhões de reais) nas agências nacionais de combate ao terrorismo. Somente na Polícia Federal a estimativa é de um novo investimento de AU$320.000.000 (trezentos e vinte milhões de dólares australianos) até o final desse ano (2017).

É claro que tudo isso altera o nosso jeito de viver.

Mas acredito que a foto abaixo ilustra da maneira mais simples possível a mudança no cotidiano. Tirei essa foto na última semana chegando ao escritório. Esse é o café palco do Sydney Siege que comentei aqui. Basta ver as colunas de concreto cercando a praça visando impedir novos ataques de carros e caminhões, como os acontecidos na Alemanha esse ano, por exemplo; os pontos turísticos da cidade são hoje todos dominados por tais placas e outros tipos de barreiras físicas.

Sobre Morar Fora e (não) Poder Opinar

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Várias foram as vezes em que, por morar fora, disseram-me que não poderia opinar sobre o que ocorria no Brasil. Situações como a mostrada no tweet abaixo – embora acontecida com outra pessoa – são comuns também comigo:

É como se seu conhecimento do país no qual morou por décadas simplesmente desaparece ao emigrar; como se trinta anos de experiências vividas em um certo local deixassem de ter validade por agora exercer sua profissão em outro continente; como se sua relação com seus familiares simplesmente cessasse de um momento para outro; como se as informações sobre o Brasil deixasse de chegar à você pelo fato de estar distante do local onde nasceu.

O contrário também parece ocorrer, já que muito valor se dá à opiniões e estudos de pessoas que passam algum tempo no Brasil e escrevem sobre situações não vividas por eles. Parecem acreditar que a simples presença física em um certo território traz conhecimento sobre a história daquele país e que, portanto, suas posições não podem ser questionadas. Poderia citar vários exemplo aqui.

Tudo isso é um absurdo sem tamanho.

Distanciar-se de seu país natal traz, sem dúvidas, certa independência ao observá-lo – e isso é bom. Ao libertar-se de alguns de seus problemas temos condição de compará-lo com “verdades gerais” – regras, políticas, leis, comportamentos, etc. que fazem outros locais prosperarem – que poderiam ser aplicadas para resolver nossos problemas no Brasil.

Não é coincidência a obra de diversos filósofos – pessoas que buscam verdades gerais e as contrastam com a realidade – ser produzida quando estão fora de sua terra natal, justamente por estarem fora dela. John Locke produziu parte sua obra na França; Descartes na Holanda.

Obviamente que o fato de estar fora do Brasil, por si só, não traz automaticamente uma nova visão sobre nosso país: é preciso querer usar as novas informações adquiridas em seu novo país de residência para entender o Brasil. É o que tento fazer aqui muitas vezes ao comparar dados, pesquisas e notícias australianas com minha experiência vivida no Brasil.

Querer continuar participando da discussão pública no Brasil não é, de maneira alguma, a regra entre os brasileiros que moram no exterior. Basta observar o índice de abstenção nas eleições para presidente de 2014 no consulado de Sydney (quase 80%). Mas isso não significa, de forma alguma, que as opiniões expressadas por quem continua participando deva ser ignorada; devem sim ser interpretadas pelo que elas são: uma visão diferente, formada por novas experiências e conhecimentos, de quem efetivamente viveu a realidade de que fala e de que ainda mantém um relacionamento próximo.

Charges, Liberdade de Expressão e a Morte de Bill Leak

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A primeira vez em que me deparei – até onde lembro – com a questão da liberdade de expressão foi no final da década de 80 com a polêmica de “Versos Satânicos”, livro de Salman Rushdie. Houve uma repercussão enorme no Brasil do que acontecia no Reino Unido, dos protestos nas ruas de Londres e, claro, da sentença de morte dada pelo Ayatollah Khomeini e a imediata resposta das autoridades ocidentais.

Acho que vale um pequeno resumo do caso antes de prosseguir. O termo “Versos Satânicos” refere-se à trechos do Corão ditados ao profeta Maomé pelo Diabo; são versos, pelo que pouco que sei, que permitiriam o culto à outros Deuses, ferindo portanto uma questão central do Islã: o monoteísmo. Esses versos não constam no Corão hoje, obviamente, e referir-se à eles é por si só blasfêmia. Algum tempo depois o Ayatollah Khomeini publica uma Fatwa – que é um julgamento (ou decisão), por uma autoridade islâmica, de uma questão da própria lei islâmica – condenando Salman Rushdie à morte.

Duas coisas ocorrem na sequência, que é o que interessa para esse texto:

  • Um enorme apoio das autoridades ocidentais à liberdade de expressão como direito humano inalienável.
  • Um pedido de desculpas de Salman Rushdie aos muçulmanos, prontamente rejeitado pelo Ayatollah Khomeini.

Os dois acontecimentos, na época, pareceram-me fazer todo sentido. Era reconfortante saber que na sociedade em que vivia existia proteção à liberdade; era também reconfortante saber que alguém se arrependia de ofender gratuitamente a religião alheia (era essa a minha interpretação da questão na época). Obviamente com o tempo mudei de posição quanto ao segundo ponto, afinal de contas ser obrigado a se desculpar (para tentar evitar uma sentença de morte) por algo dito não é liberdade de expressão de maneira alguma.

A questão parecia definida: liberdade de expressão era considerado um direito humano no ocidente e não haveria mudança de posição com relação à isso. Mas vejamos como os próximos casos se desenrolam.

Em meados dos anos 2000 o cartunista dinamarquês Fleming Rose publica uma série de charges intituladas “O rosto de Maomé”, dos quais a mais famosa é talvez a charge em que o profeta aparece com bombas escondidas em seu turbante. A reação é violenta ao redor do mundo com quase 140 mortes no total; até hoje Rose só anda com seguranças e sua família fica uma localização não conhecida.

O caso de Rose tem similaridades óbvias com Rushdie: um autor do ocidente criticando o Islã, mas a reação é mais violenta no caso de Rose. Não somente o número de mortos é maior, como também as embaixadas da Dinamarca na Síria e Líbano foram incendiadas; diversas também foram as tentativas de assassinato. (1)

Mas são as diferenças que chamam a atenção – principalmente no que tange liberdade de expressão:

  • Diversos setores da mídia, principalmente nos EUA e Reino Unido, viram-se forçados a não publicar as charges de Fleming; algo visto como sensato por um dos ícones da chamada nova-esquerda americana, Ronald Dworkin, neste artigo de 2006. (2)
  • O então primeiro-ministro Britânico propõe legislação para criminalizar ofensas contra minorias religiosas. A idéia de que existe um ‘direito de não ser ofendido’ começa a se espalhar mais rapidamente. Na Austrália a 18C (3) já estava em vigor desde 1995.

O que nos leva ao próximo caso similar: o assassinato dos 12 cartunistas da revista francesa Charlie Hebdo em 2015. O caso é recente e acredito ainda estar fresco na memória (4). Vamos então às diferenças com relação aos dois casos anteriores:

  • A popularização da mídia social já é muito maior em 2015 do que jamais foi antes disso; principalmente quando comparada aos episódios anteriores aqui mencionados. A campanha “Je suis Charlie” domina a internet, levando incorretamente a crer que as pessoas engajadas entendem e se preocupam com a liberdade de expressão.
  • A idéia do direito de não ser ofendido, no próprio ano de 2015, atinge 40% de aceitação justamente na geração mais atuante na internet (5).

De qualquer forma cartunistas do mundo todo publicam charges em suporte ao seu direito de exercer sua profissão. E um deles é o Australiano Bill Leak (1956-2017) , cartunista do jornal The Australian, que publica a seguinte charge:

Charge essa que o coloca como alvo do Estado Islâmico, que o jura de morte. A partir dessa data sua vida muda, mudanças de endereço se tornam frequentes, etc. Nessa época já se percebe por aqui uma certa aversão à charges ofensivas; o ambiente já é mais hostil aos cartunistas politicamente incorretos.

Todos os casos acima referem-se à um único tema basicamente: a crítica da religião alheia.

Mas em meados de 2016, Bill Leak resolve criticar em uma de suas charges problemas (graves em minha opinião) que, se não são únicos das comunidades aborígenes, são particularmente desproporcionais nessas comunidades: violência doméstica, educação infantil de baixa qualidade, alcoolismo entre homens adultos e ausência de ambos os pais em casa.

Essa desproporcionalidade não é um caso isolado às comunidades aborígenes. Qualquer comunidade que se vê segregada do país como um todo, sendo obrigada a viver em um certa região – onde praticamente não existe infra-estrutura, empregos e oportunidades; e sendo sustentadas primordialmente com dinheiro do chamado Estado de Bem-Estar Social – apresenta tais características. Basta ver certas comunidades indígenas nos Estados Unidos (Native Americans), onde o índice de estupro e violência doméstica é maior do que a média do país.

A reação da imprensa é de repúdio à charge; a opinião é simplesmente que a charge é racista e não representa nada da realidade, apesar das evidências do próprio instituto de criminologia que diz que as taxas de violência doméstica em comunidades aborígenes são três vezes maior que entre não-aborígenes.

Mas voltando ao tópico da liberdade de expressão, o que acontece na sequência é o problema. Inicia-se com uma reclamação formal de racismo e humilhação por um órgão do governo do Estado de Nova Gales do Sul (New South Wales – NSW):

E termina com um processo da Comissão de Direitos Humanos do Governo Federal contra o cartunista. Temos um cartunista – a princípio um membro da imprensa e protegido pela sessão 18D (exceção à 18C para membros da imprensa, entre outras coisas) – sendo processado por um crime de violação aos direitos humanos pelo governo federal do próprio país do qual ele é cidadão (6). Governo esse que mostrou solidariedade com o caso Charlie Hebdo.

Dois anos depois do massacre em Paris, a liberdade de expressão vêm perdendo adeptos. O politicamente correto (a “escravização da mente” nas palavras de Andrew Klavan) é o status quo nos meios de comunicação (poucas são as exceções); petições são criadas tentando impedir idéias controversas de serem discutidas. E até o plebiscito sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo não acontecerá por receio de se ofender pessoas durante as discussões e debates.

Mas o lado mais triste da questão mostrou-se quando da morte de Bill Leak no mês de março. Pessoas influentes na mídia e universidade chegaram a comemorar sua morte; os mais ‘moderados’, como Tom Cummings (do Partido Verde) apenas celebram o fato de sua morte significar o fim de suas charges e críticas.

A mudança é brutal em dois anos, infelizmente. E na última sessão parlamentar de março, as tentativas de mudanças na seção 18C (que tentava substituir “ofensas” por “assédio” no texto) foi vetada pelo Senado.

 


(1) Entrevista de Fleming Rose à Dave Rubin com maiores detalhes:

(2) Dworkin tem uma posição complicada (na verdade é um autor complexo e muitas vezes difícil de compreender) em relação à liberdade de expressão, tentando conciliá-la com seu ativismo judicial e sua idéia de igualitarismo. Quem tiver interesse, sugiro este artigo acadêmico de 2009.

(3) Escrevi sobre a seção 18C do Racial Discrimination Act da Austrália aqui em 2015.

(4) Caso não esteja, resumo do caso na Wikipédia.

(5) Farei um post analisando essa pesquisa e comparando os resultados entre os países que nos interessam aqui: Brasil, Austrália e Estados Unidos.

(6) Após meses de disputa um juíz federal arquivou a ação em dezembro de 2016.

 

 

 

 

Sobre a questão dos Refugiados (IV)

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É de fundamental importância discutir o quê, efetivamente, a Austrália deseja atingir com seus programas de imigração. Focando somente na questão dos refugiados, três perguntas são centrais para uma discussão frutífera:

  • Com que intuito o país emite vistos humanitários?
  • Os objetivos, tanto do programa como da sociedade em geral, estão sendo atingidos?
  • Quais as alternativas para uma solução completa?

Pra responder a primeira pergunta é necessário compreender a situação geo-política das diversas nações das quais os refugiados vêm. Mesmo na questão Síria / Iraque, que é a mais evidente e divulgada, o número de pessoas que entende o problema é mínimo (1). Ninguém que participe das discussões públicas atuais (na TV, jornais ou mesmo blogs independentes) consegue resumir corretamente o que levou à atual crise dos refugiados e quais suas implicações mais básicas.

Sem o conhecimento do que realmente ocorre, não se consegue discutir também o papel da Austrália no problema (ou qualquer outro país) e muito menos estratégias de médio e longo prazo. A Austrália tem, por exemplo, uma participação militar importante no Oriente Médio que também é pouquíssimo discutida. Somente “discute-se” questões de caráter militar quando um de nossos soldados é morto em combate. Serve unicamente como argumento emocional para a retirada das tropas da região.

Por que a atual migração em massa? Por que a Austrália atua militarmente na região? Por que a coligação militar Austrália-EUA-Reino Unido existe? Por que priorizar (ou não) uma certa região para receber refugiados? Sem esse conhecimento histórico-político é praticamente impossível entender quando e como vistos humanitários devem ser emitidos.

Já para responder a segunda pergunta, temos que partir da premissa que a discussão se baseará em dados reais e o debate público será fomentado. O segundo post dessa série traz alguns desses dados; negá-los sem apresentar outras fontes não ajudará em nada. Um debate sério só trará resultados se as partes envolvidas forem livres para expressar suas opiniões, questionar e sanar suas dúvidas. E para avaliar se os objetivos do programa estão sendo atingidos é necessário primeiro responder a questão inicial.

 

A terceira questão é certamente a mais difícil de todas e minha intenção não é propor uma solução para o fim do terrorismo, até porque obviamente não sei a resposta. Mas um problema tão complexo quanto esse não pode ser atacado de uma única maneira; aceitar mais ou menos refugiados no país é solução – é apenas uma parte dela. Acredito que pelo menos os seguintes pontos devem ser também pensados em conjunto:

  • A atuação militar nas regiões afetadas. Isso vem acontecendo e creio ser correto; o que se questiona aqui é a efetividade, foco e resultados das ações. (2)
  • Emissão de vistos humanitários temporários. Essa é uma questão polêmica na Austrália (3), mas é preciso também pensar na possibilidade de se manter pessoas no país somente até o motivo de seu asilo político não existir mais.
  • Proteger e rearranjar as pessoas em seus próprios países. (4)

E claro, se você se interessa e realmente se preocupa com a questão, estude o problema (5) e participe da solução. Existem diversas instituições privadas na Austrália e nos EUA que auxiliam os refugiados recém chegados com aulas de inglês, cursos técnicos, etc. Para a minoria cristã de refugiados, algumas igrejas e instituições católicas aqui na Austrália aceitam voluntários para ajudá-los na integração; também prestam assistência psicológica e aulas de inglês. Trabalho voluntário para ajudar refugiados muçulmanos especificamente é um pouco mais complicado, já que as organizações pedem que o voluntário tenha fluência no idioma origem do refugiado, além de uma afinidade cultural e religiosa.


(1) O melhor resumo que li até hoje a respeito da formação do Estado Islâmico, guerra civil síria e como os demais países envolvem-se na região está no exemplar de dezembro de 2014 da revista espanhola Historia y Vida, disponível para compra online. Indico fortemente a leitura.

(2) O que interessa para a Austrália é a maneira como os EUA atuam na região. Agora na gestão Trump é importante entender o que pensa Sebastian Gorka, principal membro do security advisory staff do presidente. Recomendo a leitura de seu livro Defeating Jihad; não acredito existir tradução em português ainda.

(3) Um pouco do histórico dos TPVs na Wikipédia.

(4) É o que argumenta e explica Luma Simms no The Federalist.

(5) Existe um curso online no Coursera chamado Terrorism and Counterterrorism da Universidade de Leiden. A universidade é holandesa, mas o curso é inglês.

Sobre a questão dos Refugiados (III)

2 Comentários

Para quem não acompanha o assunto pode parecer estranho, mas não existe uma definição clara e global do que terrorismo signifique. Apesar da existência de uma definição dicionarizada do termo (o Oxford dictionary define terrorismo como: o uso não-autorizado de violência e intimidação para fins políticos), o professor Alex Schmid enumera quatro razões que explicam a dificuldade em definir terrorismo:

  • O fato de as noções políticas, legais, sociais e populares sempre divergirem sobre o termo.
  • O fato de, ao definir-se terrorismo, legitimar-se ou criminalizar-se certos grupos.
  • O fato de o terrorismo manifestar-se em diversas formas.
  • E o fato de, mesmo as definições dicionarizadas, terem mudado muito ao longo de dois séculos.

A falta de uma definição clara permite então que classifique-se certos acontecimentos como terrorismo (ou não) dependendo de tecnicalidades e vontades políticas. Acontece, inclusive, de classificar-se um ato como terrorismo por quase um ano e, depois de um período de investigações, classificá-lo como não terrorismo. Foi o que aconteceu no primeiro caso que quero comentar:

Sydney Siege

Em dezembro de 2014, um refugiado iraniano de 5o anos invadiu um café no centro de Sydney e tomou como reféns oito pessoas, incluindo uma brasileira. Logo do começo da crise foi hasteada uma bandeira na janela, que acreditou-se ser do estado islâmico, mas que não era.

Durante todo o tempo não ficou clara a motivação do sequestro. O que se sabia era que ele já tinha algumas passagens pela polícia (por variados motivos), já havia sido preso anteriormente e também estava em uma lista de possíveis terroristas.

Passadas 16 horas, a polícia invadiu o café, mas dois inocentes (além do sequestrador) foram mortos (Mais detalhes sobre o ocorrido e consequentes repercussões aqui).

Durante muito tempo tratou-se do ocorrido como terrorismo. Esse artigo de agosto de 2015 diz que não há dúvidas sobre o fato de Monis ser um terrorista radicalizado. Mas já no aniversário de um ano do ocorrido, a prefeita de Sydney (Lord Mayor) opta por desqualificar o ocorrido como um ataque terrorista.

The Parramatta Shooting

Em outubro de 2015 um garoto de 15 anos, gritando “Allahu Akbar“, atira e mata um policial desarmado em Parramatta (um bairro ao oeste do centro de Sydney). Na sequência é morto por um dos policiais que faziam a guarda da delegacia.

Durante as investigações quatro pessoas são presas e, nesse caso, acusações de terrorismo são efetivamente feitas contra eles. Ainda como consequência do ocorrido uma mudança na lei foi feita para permitir que control orders fossem aplicadas para maiores de 14 anos.

O garoto era iraquiano, mas não um refugiado. Membros de sua família, no entanto, vieram como refugiados para a Austrália e estavam na lista da polícia como possíveis terroristas.

Apesar de o Grand Mufti da Austrália (autoridade muçulmana) negar veementemente o episódio como terrorismo, o incidente é oficialmente considerado um ataque terrorista não perpetrado por um refugiado. O que nos leva ao último caso que quero comentar:

A morte de Shadi Jabar

Shadi Jabar é a irmã do garoto de 15 anos do caso acima. Logo após o incidente ela foge para a Síria e, no decorrer das investigações, descobre-se que ela é uma das principais recrutadora do estado islâmico.

Em um ataque aéreo norte-americano ela é morta juntamente como Neil Prakash, também um australiano radicalizado e combatente do estado islâmico e principal alvo do ataque.


No próximo e último post dessa série tento ligar as informações descritas nos posts IIe III e dar minha opinião de como deve ser a discussão pública a respeito de um tema tão complexo e quais as possíveis alternativas.

 

Sobre a questão dos Refugiados (II)

1 Comentário

Nesse segundo post da série comento se existe ou não fundamento para os comentários do ministro da imigração, Peter Dutton.

Minha base será o estudo “Settlement of the new Arrivals“, que foca primordialmente na chegada de refugiados à Austrália. É um estudo de 2011; não leva em conta portanto o aumento no número de vistos para sírios e iraquianos, mas ainda assim 15,6% dos estudados são iraquianos.

  • Sobre a fluência em inglês

Um número ínfimo de refugiados falam inglês “muito bem” (very well) ao entrar na Austrália. Com o passar dos anos esse número aumenta de maneira muito tímida, como mostrado no gráfico. Passados 5 anos apenas 15,4% dos refugiados estudados passam a ter um nível muito bom de inglês. E 42% deles, passado o mesmo período de tempo, ainda não conseguem comunicar-se em inglês.

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O motivo dessa pouca melhora no nível de inglês não é explicado pelo relatório, mas é possível tirar algumas conclusões a partir de dados secundários:

  • 25% dos refugiados chegam com um nível de educação superior (curso técnico ou universitário). 18% chegam sem nenhum tipo de educação.
    • Podemos concluir daí que a falta de educação como um todo também torna o aprendizado de um novo idioma uma tarefa complicada.
  • Pessoas sem nenhuma conexão anterior na Austrália, ou seja, pessoas que chegam sem nenhum familiar ou amigo próximo já residindo no país, desenvolvem um nível melhor de inglês ao longo do tempo.
    • Esse é um dado interessante e nos faz concluir o óbvio: Se um imigrante/refugiado opta por não se inserir na cultura local como um todo, o aprendizado do idioma será prejudicado. Isso é comum também com familiares de residentes permanentes e cidadãos que pra cá migram.
  • Pessoas que mudam para regiões rurais desenvolvem um nível melhor de inglês ao longo do tempo.
    • Esse ponto é um pouco mais complicado de analisar e até certo ponto surpreendente em um primeiro momento. Mas o ponto é: mesmo as pessoas que chegam sem conexões anteriores no país tendem a permanecer nas regiões onde já existam pessoas que sejam i) da mesma etnia ii) e/ou que praticam a mesma religião iii) e/ou que tenham o mesmo idioma de origem. Isso não acontece nas regiões rurais; é uma característica das regiões metropolitanas.
  • Sobre o uso do assistencialismo

Assitencialismo é difícil de ser analisado, já que os dados referem-se ao estado de bem-estar-social como um todo, e não o que no Brasil entende-se por “bolsa”. Nesses dados constam benefícios/direitos/bolsas, tais como: seguro desemprego, auxílio creche, bolsa de estudo e até percentual de aposentadoria. De qualquer forma é possível perceber pelo gráfico abaixo que refugiados recebem um número muito maior de pagamentos quando comparados com Family (familiares de residentes e cidadãos) e Skilled (residentes permanentes que vêm pelo programa de profissionais qualificados). 85% das casas recebem algum tipo de auxílio.

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É importante verificar também que os pagamentos não diminuem substancialmente com o passar do tempo. A variação é de apenas 6,5%.

Um segundo dado crucial é como o desemprego diminui ao longo de 5 anos (no Chart 11). 39% dos refugiados estão empregados depois de 5 anos, enquanto 19% deles estão empregados em até 2 anos.

A faixa laranja (do Chart 11)que é difícil de ser compreendida, que são pessoas que não estão desempregadas (faixa amarela, que também considera as pessoas que não estão procurando emprego). O relatório dá como exemplo pessoas que estão estudando ou fazendo trabalho voluntário.

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  • Sobre a Austrália já receber o maior número de refugiados per capita no mundo

A Austrália é o país que mais recebe refugiados per capita pelo programa UNHCR resettlement da ONU. Resettlement nesse caso significa o país aceitar refugiados que já estejam em um dos campos da ONU pelo mundo. Faz parte do programa o país destino aceitar o fato deve prover condições para o refugiado estabelecer-se no país; e de que o refugiado não voltará ao seu país de origem.

No entanto, um percentual pequeno dos refugiados do mundo (em torno de 1% somente) reestabelecem-se em um novo país através desse programa. No geral o Líbano é o país com maior número de refugiados per capita com 1 para cada 4 nativos (A Austrália tem 1 para cada 687; O Brasil 1 para cada 27 mil; EUA 1 para cada 1,2 mil) e a Turquia é o país com maior número absoluto de refugiados com quase 3 milhões (Austrália tem 36 mil; Brasil 7 mil; EUA 268 mil).

Comentarei em meu (quarto e) último post da série essas diferenças em mais detalhes. Falarei também sobre alternativas (ou complementos) ao simples recebimento de um maior número de refugiados e o que pode ser feito para melhorar o programa existente, que pelos números acima não parece ter a eficácia que deveria, dado o volume investido pelo governo federal.

No post seguinte (o terceiro) falarei sobre a questão dos ataques terroristas perpetrados (ou não, segundo governo e imprensa) por refugiados na Austrália.

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